Storytelling
Cliente:
Fundação Dorina Nowill para Cegos
Matheus não vê nada, nem vulto. Mas Matheus é um artista.
Carismático, ele canta, dança, dubla, conta histórias e sabe como ninguém
tocar sua guitarra de brinquedo. Recentemente, ele passou por um problema que o
atingiu em cheio e que, por isso, devastou a família. Mas a impressionante
mistura de determinação e doçura que esse menino de seis anos consegue ter vem
fazendo com que ele supere tudo de forma serena e, mais do que isso, ajudando a
própria família a se recuperar.
A mãe, Jaqueline, sabe do que o filho é capaz e, por
isso, desde cedo estimulou em Matheus o que ele sempre mostrou que podia ter: a
própria independência.
A gravidez de Jaqueline foi tranquila, assim como todo o
pré-natal. Quando o nenê nasceu, após uma cesariana, a médica comunicou aos
pais que o filho tinha um problema grave nos olhos e que eles deveriam procurar
um oftalmologista com urgência.
No instante em que deixaram o hospital, Jaqueline e Diógenes,
seu marido, foram procurar ajuda de um especialista, pois a médica havia dito
que o problema poderia se agravar, avançar até o cérebro e matar o bebê em
poucas horas. O novo médico avaliou a criança e chegou à conclusão de que o
problema era sério, mas afirmou que a vida Matheus não corria risco. "Ele nasceu com as retinas
descoladas", diagnosticou. Quatro dias depois, o bebê foi submetido a
novos exames e os médicos disseram que ele teria que fazer uma cirurgia para
tratar um glaucoma. O procedimento iria estabilizar os olhos e colar um pouco
as retinas.
Apesar da indicação da cirurgia, o médico foi categórico:
"Matheus nunca vai enxergar".
"Meu mundo desabou", conta a mãe. “Saí de um hospital
com meu filho e no minuto seguinte entramos em outro. Foi nesse relâmpago que
eu recebi a notícia de que teria um filho cego. Eu, que até então nunca havia
tido contato com ninguém que fosse deficiente visual. Fiquei desorientada”,
recorda.
Apesar do baque, Jaqueline percebeu que seguir em frente
era a única opção e foi isso que fez.
Matheus começou a ir para a creche ainda bebê. Quando
começou a andar, mostrou alguma dificuldade; ele não tinha muita confiança e
acabava dando alguns passinhos para trás. Mas com bastante estímulo, Matheus
começou a se desenvolver. Na creche, ele tinha muito espaço: subia, descia,
caía, levantava, andava de novo. Começou a falar rápido e conseguia reconhecer
as pessoas desde muito novinho.
Ainda nessa época, a Jaqueline levou o filho à Fundação
Dorina. "Mas decidi parar de ir, porque eu ainda não aceitava muito bem.
Com a minha falta de conhecimento, achava que não tinha necessidade e que não
havia muito a ser feito", diz.
Aos quatro anos e meio, o garoto começou a frequentar uma
escolinha particular. Mas as professoras não eram preparadas para lidar com crianças
especiais e nem demonstravam muito interesse em aprender. Tanto, que o
desenvolvimento de Matheus ficou estagnado nesse período.
Há poucos meses, Jaqueline e o pai de Matheus se
separaram e ela, então, mudou-se com Matheus e Rebecca, a filha caçula, para um
apartamento.
Para ajudá-la no cuidado dos filhos, a mãe decidiu
contratar como babá uma das professoras da antiga creche. "Era uma pessoa
de quem ele gostava muito, por isso fiquei tranquila ao chamá-la para trabalhar
lá em casa", lembra Jaque. Mas o que seria um apoio acabou virando o pior
dos pesadelos para a família.
"Descobri que essa babá estava agredindo fisicamente
e assediando moralmente o Matheus", conta indignada a mãe.
Desconfiada de algumas manchinhas que viu na pele do
menino, Jaqueline decidiu deixar um gravador ligado em casa, que conseguiu
flagrar alguns momentos de agressão. Ao confrontar a funcionária, a ex-babá,
que também tem filhos, não negou as agressões e ainda respondeu: "Fiz
mesmo. E é assim que tem que ser!"
"É difícil imaginar como uma pessoa conseguia
agredir daquela forma uma criança, ainda mais uma criança tão doce e afetiva
como Matheus; uma criança que tão pouco poderia fazer para se defender",
desabafa Jaqueline. Segundo a mãe, a babá chegou até a confessar que misturava ‘alguma
coisa’ no suco que dava para ele tomar, pois queria ter sossego para dormir à
tarde. "O que mais me machucou foi saber que ela ameaçava o meu filho,
dizendo que se ele não se comportasse, todo mundo iria abandoná-lo",
indigna-se. "Isso provocou um trauma profundo nele. Até hoje, de vez em
quando ele me pergunta se eu vou deixá-lo sozinho".
Arrasada, Jaqueline registrou um Boletim de Ocorrência,
demitiu e ex-babá e decidiu trocá-lo de escola como uma maneira de ajudar a
apagar de uma vez por todas toda a rotina que poderia fazê-lo se lembrar desse
período horrível.
Aos poucos, Matheus vem conseguindo esquecer o que sofreu
nas mãos da antiga babá. “Na nova escola ele se sente bem mais seguro”,
afirma a mãe. “Ao contrário da
outra, quando chegamos lá, as professoras disseram: ‘Temos crianças especiais,
mas esse vai ser o primeiro caso de deficiente visual e temos muito interesse
em descobrir o melhor caminho para educá-lo’. Me senti nas nuvens, pois essa é
a postura que eu acho que toda
escola tem que ter. Todas as crianças têm que ser incluídas e todas as crianças têm que saber que existem diferenças”.
Na nova escola, Matheus faz natação, participa das
festinhas, fez muitos amigos, se diverte na perua e diz até que está namorando.
"As professoras têm muito interesse e dedicação em encontrar as melhores
formas de ajudar na educação dele. Nessa nova escola, o ritmo é outro:
eles querem que as profissionais da Dorina vão até lá para apoiá-los no
processo de alfabetização", alegra-se a Jaqueline.
Há um ano e meio Matheus voltou a frequentar a Fundação
Dorina, e isso vem ajudando ainda mais no desenvolvimento dele e também na
superação do trauma.
"Os resultados têm sido incríveis!", constata a
mãe. "Ele tem uma ligação muito forte com a psicopedagoga e está passando
também pela fisioterapeuta. Antes, o Matheus ficava com a cabeça muito
abaixada e também tinha muita mania de mexer no olhinho, o que fez com que um
ficasse menor do que o outro. Mas agora está melhorando muito a postura. Já
está até conhecendo as letrinhas na máquina do braile. Nem faz tanto tempo que
ele está na Dorina, mas a gente já percebe uma diferença muito grande",
alegra-se. "Ele vai para a Dorina com tanto prazer!"
"A Dorina vem me ensinando que as coisas com uma
criança cega são um pouco mais lentas, mas que cumprir todos os passos é muito
importante, pois eles são essenciais para o desenvolvimento. Na Fundação
aprendi que tudo tem a sua hora certa", observa.
Matheus ainda não sabe ler, mas, pelo tato, consegue
identificar todos os áudio-livros que tem. E ele ouve tudo mesmo, da história
até a ficha técnica de cada CD. “Minha autora preferida é a Ana Claudia Ramos!
Os áudio-livros que eu mais adoro são ‘Abraço de urso’, ‘Volta às aulas’ e
‘Capitão Mariano’. Mas o meu preferido mesmo é “Meu pai é o máximo”, conta.
“Essa paixão toda começou depois que Matheus participou
de uma sessão de cinema com áudio-descrição na Dorina. Ele passou a amar os CDs
dos livrinhos. Ele conhece todos, sabe de cor até os nomes dos autores e dos
narradores. Foi impressionante como o cinema o estimulou”, analisa Jaqueline.
“Ah, e um detalhe: agora toda noite tem que ter história!”
Em outra experiência inédita, Matheus assistiu recentemente
à sua primeira peça teatral com a equipe da Dorina, também com áudio-descrição,
e ficou encantado. “Nós vimos o ‘Amigãozão!’, empolga-se. Além disso, o menino
adora dançar, ouvir novelas e escutar músicas no radinho dos Minions que ganhou
de presente da mãe.
"Matheus tem uma sensibilidade incrível. Ele conhece
as pessoas só de encostar nos braços dela, ele percebe quando trocamos uma
marca de café ou de um iogurte. Ele chega a ter dificuldades para dormir, pois
consegue ouvir cada som, por mais distante e baixo que seja", descreve a
mãe. "Essa sensibilidade dele nos faz aprender muito a cada dia", frisa.
Desde cedo aprendeu a ser independente. "Ele me
ajuda a lavar roupa, quer ajudar nas tarefas de casa, toma banho e vai ao
banheiro sozinho, escolhe as próprias roupas e, de um tempo para cá, escolhe
até o corte de cabelo", diverte-se Jaque. "Eu explico como são os
penteados e ele escolhe entre os modelos 'Neymar', 'Gustavo Lima' e 'Luan
Santana'. “Hoje eu estou de Luan Santana”, comenta vaidoso o menino, enquanto
passava a mão pelo elegante cabelo penteado com gel.
Medo não é com ele. Matheus adora aventuras e, com a
ajuda da mãe, até anda de bicicleta. Ele adora carros. Gosta de tocar a lataria,
de sentir se foi lavado recentemente, de perceber as diferentes formas e gosta,
principalmente, de descobrir pelos sons se o carro precisa de reparo ou se é
mais ou menos potente.
Curioso, pergunta o porquê de tudo e pergunta mais de uma
vez para testar as respostas. "Ele quer sempre ter certeza de que está
recebendo as explicações corretas", frisa a mãe.
Matheus é doce, afiado, divertido, responsável, carinhoso
e é também guloso. Mas gosta só de coisas saudáveis: "Salgadinho não é com
ele. Por outro lado, ofereça um prato de arroz com feijão, um escondidinho de
carne e você vai ver do que ele é capaz”, brinca Jaque.
Rebecca, a caçulinha da família (e tão artista quanto o
irmão), tem quatro anos. Jaqueline só descobriu que estava grávida dela aos cinco
meses de gestação. “Foi difícil, um susto, na verdade, pois quando o Matheus
nasceu eu não me via mãe de outra criança. Eu achava que eu deveria me dedicar
só a ele”, conta.
Mas Jaque afirma que desde muito novinha Rebecca a
surpreendeu. “Parece que desde sempre ela soube entender que eu teria que ter
um pouco mais de tempo para ele. Hoje ambos sabem que não existe diferença
entre eles, o que existem são cuidados diferentes.”
A dedicação de Rebecca ao irmão é comovente. Certo dia,
quando eles caminhavam na rua acompanhados da mãe, Matheus tomou um tombo e
ficou muito chateado, talvez até mesmo envergonhado. "Na volta do passeio,
Rebecca caiu de propósito e imediatamente disse ao irmão: 'Tá vendo, Matheus,
não é só você que cai. Todos caem", narra a mãe.
"Quando eu engravidei, eu tinha certeza de que ele
seria perfeito. Depois que ele nasceu e eu tive certeza de que ele seria cego,
em nenhum momento eu achei que não iria aguentar, pois eu queria viver só para
ele", expõe. "Nós nunca achamos uma causa para a deficiência do
Matheus. Mas eu não me preocupo mais com isso. Eu nunca pensei que meu filho
poderia ser cego, hoje eu penso que ele não poderia ser mais especial."
Jaqueline conta que quando Matheus ouve alguém dizer “Ô,
tadinho...” ele responde: “Eu não sou coitado. Eu sou feliz.” E se dizem que
ele não consegue enxergar, na mesma hora ele devolve: “Eu vejo com os dedos.”
As mãozinhas pequeninas de Matheus são sensíveis e
afetuosas. Quando ele se identifica com alguém, seus dedos deslizam pelo rosto
da pessoa para que ele possa descobrir como é o formato do nariz, da testa, a
textura da pele e dos cabelos. E, assim, Matheus conhece as pessoas com uma
precisão emocionante.
“Eu tenho medo de como será o amanhã do meu filho, claro.
Mas sei também que Matheus é sempre muito dedicado a tudo o que faz. Quer
sempre fazer bem feito. Ele se cobra muito. Não quer ter privilégios e
consegue, todos os dias, me provar que é mesmo um menino muito capaz. Às vezes,
quando eu fico receosa de algo que ele se propõe a fazer, ele me diz: ‘Mãe,
confia em mim.’ E eu, é claro, confio. E sei que ele vai longe.”
Matheus já sabe o que vai ser quando crescer: “Ou
professor de música, ou cantor, ou mecânico de óleo ou eletricista de
ventilador”, afirma o menino. Quem tem a sorte de conhecê-lo de perto, tem a
certeza de que Matheus pode mesmo ser tudo o que quiser.