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Fundação Dorina Nowill para Cegos
Case Fabiano Marcelino Martins
O bom humor de Fabiano é contagiante. Aos 29 anos, ele consegue transformar com leveza a triste história que viveu há cinco anos em uma divertida narrativa que arranca risos até do ouvinte mais comovido com sua história.
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Naquele dia havia decidido aproveitar o início das suas férias: iria com a esposa buscar o cheque de sua rescisão e depois dariam um passeio pela cidade. Deixou o filho na casa de um vizinho, pegou emprestada a moto de um amigo, pediu à mulher que colocasse seu vestido mais bonito e foram passear. “Pegamos o cheque e, na volta, estávamos na Marginal Pinheiros sentindo aquele ventinho no rosto...”
A vida passando veloz por eles a 91 km por hora foi a última cena que Fabiano enxergara. Ele nunca mais voltaria a ver.
Fabiano não se lembra de nada. Do instante em que colidiu com um táxi à sua frente até o momento em que, oito dias depois, acordaria do coma, ele simplesmente apagou da memória. “Me contaram depois que eu fiquei com metade do corpo para dentro de um táxi e a outra metade para fora, enquanto minha mulher voou 20 metros. O motorista do táxi fugiu e, para completar, roubaram a minha carteira onde estava o nosso cheque.”
Fabiano foi levado de helicóptero para o Hospital das Clínicas, enquanto a esposa foi de ambulância para o Hospital São Paulo. “Só me acharam lá no HC porque uma vizinha viu o acidente no Datena e contou para o meu irmão.”
Fabiano ficou em coma por oito dias e mais de um mês internado. “Quebrei o rosto inteiro. Tive um trauma profundo nos olhos, minha cara ficou afundada e tiveram que reconstruir tudo com platina. Quando acordei, estava meio dopado e não entendi nada do que estava acontecendo. Não tinha ideia por que estava ali. Não conseguia nem raciocinar direito para entender por que eu não estava enxergando.”
Nos primeiros dias, o médico disse à família que seria preciso acompanhar o quadro de Fabiano para saber ao certo se ele voltaria a enxergar. “Mas os dias foram passando e o médico nada. Aí, cansei de esperar e resolvi eu mesmo botar uma pressão; cheguei na sala dele e perguntei na lata: ‘Doutor, eu vou voltar a enxergar ou não vou?’ E aí ele respondeu: ‘Infelizmente, meu amigo, não vai ter jeito para você. Você nunca mais vai enxergar, Fabiano.”
“Ah... Nessa hora eu fiquei desesperado. Fiquei revoltado. Quem iria cuidar do meu filho, trabalhar para pôr comida na boca dele? Chorei demais, sem parar.”
Preocupada, a mãe de Fabiano perguntou ao médico o que fazer e ele respondeu: “Deixa ele; é bom que ele chore e ponha tudo pra fora agora.”
“Aos poucos fui me acostumando com a nova realidade. No HC mesmo, eu estava numa enfermaria cheia de colegas da minha idade, um sem perna, o outro sem braço. A gente ficava ali, rindo das desgraças um do outro. E vi que as coisas não são bem assim, não. Deus permite que as coisas ruins aconteçam, mas na mesma hora ajuda a gente de outro jeito.”
E assim Fabiano recebeu alta do hospital, voltou para a sua casa no Jardim Ângela e pode, enfim, reencontrar a mulher que, apesar de não ficar com sequelas do acidente, também esteve internada por quase um mês.
“Quando cheguei em casa bateu um desespero. Só conseguia pensar: ‘fiquei cego, já era. Não sirvo pra mais nada.”
Ainda no Hospital das Clínicas, os médicos sugeriram à família que encaminhasse Fabiano à Fundação Dorina para que ele começasse o quanto antes o seu trabalho de reabilitação.
“Eu não queria vir, não. Achava mesmo que a minha vida tinha acabado. Mas minha mãe me acordou à força e me arrastou até aqui para que eu começasse o tratamento. Quando eu comecei a vir, sofria demais quando ouvia as vozes das crianças cegas. Eu não chorava por fora, mas chorava demais por dentro. Por mim e por elas.”
Depois disso, Fabiano participou da triagem, passou pelo Serviço de Assistência Social e começou a frequentar as aulas de mobilidade.
“Não gostava de ficar dependendo dos outros. Meu sogro começou a me trazer para a Fundação, mas ele ficava tirando sarro da minha cara e isso me machucava muito. No ônibus, ele falava comigo: ‘Não está vendo aquele lugar ali, não?` E ria da minha cara... Isso foi me machucando e um dia eu decidi que eu não iria mais depender dele, não. Resolvi ir sozinho pra a escola” (que é como ele, às vezes, se refere à Fundação Dorina).
“Peguei um cabo de vassoura para servir de bengala, saí de casa, olhei prum lado, olhei pro outro, olhei pra frente. ‘Ah, eu não vou não”, diverte-se. “Aí me lembrei do velho tirando sarro de mim e saí de casa de novo: olhei prum lado, olhei pro outro, olhei pra frente e fui. Aí passaram uns amigos de carro e perguntaram:
- Fabiano, ô loco, onde cê tá indo, véi?
- Tô indo pro terminal pegar o ônibus pra ‘escola’.
- Tá doido, mano? Entra aí que a gente te deixa lá.
“Aí eles me largaram lá no terminal. Chegando lá, outro cara me viu andando meio perdido e perguntou:
- Rapaz, onde cê ta indo?
- Tô tentando chegar lá na Botucatu [rua próxima à Fundação Dorina].
- Quer que eu te ajude?
- Só se for agora!
“Aí ele me levou até o ônibus. Depois pensei: ‘Até aqui tá fácil.”
“Quando desci do ônibus lá perto da Dorina, eu comecei a andar na rua assoviando, de tão feliz que eu estava. Pensei “rapaz... e não é que dá para vir sozinho mesmo? Eu também sou filho de Deus!”
Fabiano lembra que quando chegou à Fundação, a professora veio até ele e perguntou:
- Onde está o seu sogro?
- Deixei ele sozinho. Eu ficava escutando umas coisas aí que eu não gostava e decidi deixar ele lá.
“A professora comeu meu toco. Me disse que eu não poderia mais fazer isso, que eu não estava preparado. Mas eu, que nem burro empacado, disse que se eu não pudesse mais vir sozinho então eu não viria mais. Aí a professora chamou umas pessoas, conversei com todas elas e não arredei o pé. Aí ela decidiu me dar umas aulas intensivas. Rodamos o quarteirão e eu todo alegre, todo sossegado... Aí quando eu chego na porta da Fundação, quem estava me esperando? O meu sogro. Aí ele disse: ‘Vim buscar esse menino.’ Ele falou um monte pra mim. Aí eu respondi: ‘Preciso me virar, moço. Não posso mais ficar dependendo de vocês. Estou estudando e aqui eles ensinam tudo.”
“E foi assim que eu aprendi a andar sozinho. A professora até me elogiou”, conta alegre e orgulhoso, como um menino que acabara da tirar 10 na prova.
Depois das aulas de mobilidade, Fabiano participou das Atividades da Vida Diária (AVD), que ensina os alunos a fazer tudo o que faziam no dia a dia antes da perda da visão.
“Um dia comentei com a professora de AVD que eu estava chateado porque não podia mais fazer cavanhaque. Aí ela perguntou:
- Não pode por quê?
- Ué, como é que cego faz cavanhaque?
- Traga a gilete na próxima aula que eu vou te ensinar.
“Aí eu pensei: ‘Essa eu quero ver. Ela é mulher, como é que uma mulher vai me ensinar a fazer cavanhaque? E não foi que a mulher me ensinou mesmo?” E completa rindo de si mesmo: “Cego com cavanhaque, eu sou primeiro!”
E Fabiano continua contando histórias divertidas, como uma forma de rir feliz de si mesmo. “Um dia, logo quando fiquei cego, decidi ir pra igreja e descer sozinho o barranco pra chegar lá. Comecei a descer todo cheio, até que tropiquei e rolei morro abaixo. Levantei na mesma hora, bati na roupa para tirar a poeira e entrei na igreja como se nada tivesse acontecido, torcendo para que ninguém tenha assistido à cena. A gente supera as coisas, apesar dos obstáculos”, conta às gargalhadas. “Hoje mesmo, enquanto eu estava descendo a rua para chegar aqui na Dorina, resolvi fazer bonito e vir pelo outro canto da calçada. Estava descendo todo, todo. ‘Vai que alguma professora está atrás de mim. Tenho que mostrar que sou bom mesmo’, pensei. Mas, aí, acabei batendo o nariz no orelhão”. E, mais uma vez, diverte-se: “O orelhão não saiu da frente, né? Daí fui pro canto, descer junto do muro. Essas coisas acabam servindo para a gente aprender.”
“Então foi assim: desde que perdi a vista eu vinha direto aqui pra Fundação. Depois que vi que era aqui que eu iria aprender a viver de novo, decidi: ‘Vou viajar nesse bonde também e vou fazer amizade com esse pessoal todo daqui’. Daí fui fazendo amizades, aprendi a usar o computador e hoje tenho amigos de tudo quanto é lugar, de Minas, do Rio... E todos sempre me ensinam alguma coisa.”
Três anos depois do acidente, Fabiano teve mais um sinal de que sua vida realmente não havia acabado e que, ao contrário, ela ainda tinha muito dar a ele. “Minha mulher ficou grávida e nasceu mais um varão na família: o Vitor Hugo. É... O ceguinho aqui não é fácil, não...”
E completa com seu infalível bom humor: “Viu? A gente é cego, mas continua a se virar do mesmo jeito.”
Embora seja um rapaz sempre muito alegre, algumas coisas ainda abalam Fabiano, que sofre por não conseguir ver tudo o que gostaria. “Meu sonho era ver meu filho andando de motoquinha [bicicleta]. No dia que ele me contou que estava andando sozinho, sem as rodinhas, fui chorar escondido porque eu não nunca iria ver o moleque pedalando.”
Por outro lado, ele aprendeu a valorizar sempre o lado bom das coisas. “Quer saber? Hoje eu acho que a minha vida é melhor agora do que quando eu enxergava. Dou mais valor pras coisas, pra minha família, fico mais com meus filhos... Para você ter uma ideia, até nas reuniões de pais da escola dos meninos eu vou! Antes eu ficava sem graça, pensava que os moleques iam ficar com vergonha de mim. Mas que nada. Hoje eu vou e participo mesmo.” Em seguida, rende-se à emoção que o toca profundamente quando se lembra dos filhos: “Meu sonho é que meus meninos um dia possam dizer: ‘Meu pai, mesmo com todas as dificuldades, fez tudo o que pôde para a gente estudar e conseguir tudo o que a gente sonhava”.
Fabiano ressalta que a Fundação Dorina tem uma importância muito grande na sua vida, pois foi aqui que ele reaprendeu a viver. “A Fundação foi o pontapé inicial para essa minha nova fase. Foi aqui que eu reaprendi tudo, onde eu fiz amizades e descobri o mais importante: foram-se os olhos, mas a vida continua.”
Mas antes que ficasse sério demais, dá um jeito de descontrair: “Se não fosse a Fundação Dorina eu iria continuar caindo por aí. Hoje eu trombo em orelhão, mas não rolo em barranco mais.”
E conclui: “Eu sempre dou um jeito de estar alegre. E tenho que rir mesmo: o mundo não acabou ainda! Mas às vezes ouço umas pessoas dizerem ‘se eu estivesse no seu lugar eu não iria conseguir rir tanto, não’. E eu nem ligo, porque antes de ficar cego eu pensava a mesma coisa.”
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