domingo, 1 de maio de 2016

A história de Aïcha


Um longo caminho separa Aïcha e sua mãe, Meire, da Fundação Dorina Nowill para Cegos. Regularmente, mãe e filha percorrem 40 quilômetros de ônibus, metrô e caminhada, para ir de casa, na Vila Raquel, extremo Leste de São Paulo, até a Vila Mariana, onde fica a Fundação.   

Mas esse percurso, ainda que longo e demorado, é cumprido com muita alegria pelas duas. Até pouco tempo atrás, Meire vivia a angústia de conviver sozinha com a falta de respostas para uma série de questionamentos em relação ao grave problema de visão de sua filha de cinco anos. “Se não fosse pela Dorina, hoje Aïcha estaria cega”, desabafa.

Um atraso no parto comprometeu a saúde do bebê. Sentindo fortes contrações, Meire foi para a maternidade, mas sem perceber que a bolsa já havia estourado, a médica plantonista aplicou uma injeção de Buscopan na mãe e a liberou para voltar para casa.

No dia seguinte, já passado o período de ação do medicamento, as dores voltaram ainda mais fortes. Meire voltou então para a maternidade e o médico que estava de plantão imediatamente pediu um ultrassom e constatou que já não havia mais líquido amniótico e o bebê estava em processo de sofrimento. Ela teria que ser submetida a uma cesariana de emergência.

Quando Aïcha nasceu, a enfermeira não conseguiu disfarçar o nervosismo. Ela respirou fundo e entregou o bebê, que estava muito roxinho, para que a mãe pudesse beijá-lo. Segundos depois, recolheu a menina e a levou correndo para a UTI neonatal.

“Ninguém foi capaz de me dar nenhuma explicação. Durante sete dias não pude ter minha filha recém-nascida nos braços; só podia lhe tocar e fazer carinho através da incubadora. Foi desesperador”, relembra.

Depois de uma semana, Aïcha recebeu alta e, pela primeira vez, Meire pôde amamentá-la. “Mas eu não estava em paz. Os médicos liberaram minha filha sem dizer o que ela teve. Fiquei dois meses dormindo sentada, vigiando o bebê, com medo de ela morrer durante o sono”, relata a mãe.

Passados dois meses, Meire começou a perceber que algo estranho estava acontecendo com os olhinhos da menina. “Eles tremiam demais e não conseguiam acompanhar o movimento dos meus dedos”, explica.

Rapidamente, a mãe decidiu procurar o pediatra. Após alguns testes, ele constatou que o bebê tinha nistagmo* e encaminhou Aïcha para um oftalmologista e um neurologista. Depois de uma série de exames, alguns deles até mesmo com necessidade de sedação, foi descoberto que a menina tinha catarata em ambos os olhos. Ela precisaria ser submetida urgentemente a uma cirurgia, mas, devido ao pouco peso e a pouca idade, o médico decidiu esperar que ela completasse seis meses.

Esse tempo foi definitivo para a piora do quadro de Aïcha e em três meses seus dois cristalinos foram completamente tomados pela catarata.
 
A partir daí, a menina foi submetida a mais de 12 intervenções, entre cirurgias e correções. Foi um ano e meio de exames feitos semanalmente. Um processo desgastante para toda a família e, principalmente, para Aïcha, que ainda era um bebê de colo.

Nesse período, o nenê ainda se alimentava apenas com o leite materno. Durante todos os procedimentos, Aïcha precisava ficar 10 horas em jejum. "Tínhamos que dormir separadas para ela não sentir o cheiro do leite. Eu sofria demais por vê-la chorar de fome", relembra a mãe.

Angustiada ao ver a filha que, já aos nove meses de vida usava óculos para corrigir impressionantes 19 graus de miopia e 18 de hipermetropia, e sem saber lidar com um provável agravamento da doença ante ao desapego dos médicos com seu desespero, Meire começou a fazer buscas na internet, a fim de localizar alguma entidade que prestasse assistência à pacientes, mas também aos pais de crianças cegas e com baixa visão.

Foi pelo site que a mãe ficou conhecendo a Fundação Dorina. Meire se informou sobre todos os serviços prestados e, na mesma hora, ligou para marcar atendimento. Poucos dias depois, ela e a filha já estavam sendo atendidas pelas especialistas da Fundação.

“Eu precisava sair daquele casulo que me angustiava tanto. Precisava ajudar a minha filha!”, diz. “Os médicos não me explicavam nada, mas eu decidi buscar as repostas. Pela minha filha eu decidi vencer isso e é na Dorina que eu encontro todos os esclarecimentos de que preciso. Lá eu me sinto amparada de verdade”, conta.

Mesmo com todas as dificuldades e de toda a dura rotina entre tratamento e exames, cirurgias e convalescências, Aïcha é uma criança curiosa, ativa, divertida, bem-humorada, feliz. É extremamente carinhosa com os pais e com o irmão, adora ir à escola, a EMEI Dilson Funaro, onde todas as funcionárias têm um papel indispensável no desenvolvimento dela: "Lá, posso contar com o apoio de todos, porteiro, cozinheiras, professoras Rosilene, Eliana e Priscila, da Leda e da coordenadora pedagógica Clélia. Inclusive, as professoras Rosilene e a Clélia já foram à Fundação conversar pessoalmente com a Valéria e com a dra. Ana Néride", elogia a mãe.

Aïcha também ama ir à Fundação Dorina, onde semanalmente cativa a todos com seu sorriso largo e inocente, inabalável, mesmo às vésperas de mais uma cirurgia, desta vez para tratar de um Glaucoma recentemente descoberto pelas especialistas da Fundação.

“Apesar de toda a tortura que sentimos dentro de nós, aprendi que temos que respirar fundo, esquecer a nossa dor e concentrar em nosso pequeno. Desde que Aïcha nasceu, perguntava todos os dias ‘Por que, meu Deus, por que ela precisa passar por tudo isso sendo tão pequenininha? Por que ela está sendo privada de enxergar o mundo?' Mas, aos poucos, com a sabedoria que a gente aprende a ter com a vida, e também com toda a ajuda de todos da Dorina, percebi que o importante é focar no que é possível fazer agora. E fazer.”


* Nistagmo são oscilações rítmicas, repetidas e involuntárias de um ou ambos os olhos conjugadamente, nos sentidos horizontal (de um lado para o outro), vertical (de cima para baixo) ou rotatório (movimentos circulares) que podem dificultar muito a focalização das imagens.


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