terça-feira, 30 de setembro de 2014

"Eu sou cego, mas não sou inválido. Eu quero fazer, eu vou fazer"

Storytelling


Jorge Manuel Fortes Pires

O vozeirão aveludado e o sorriso fascinante vieram lá de Cabo Verde, uma pequena ilha localizada no Oceano Atlântico, a pouco mais de 500 quilômetros da costa da África Ocidental.

Na ilha, Jorge morava com a avó paterna, para lhe fazer companhia, e durante o dia ficava com a avó materna. Em 1960, o menino cabo-verdiano chegou ao Brasil quando tinha seis anos de idade. Daqui nunca mais sairia, para a terra natal nunca mais voltou. "Meus pais decidiram ir embora, pois lá não chovia. Não havia vida”.

Primeiro veio o pai, que havia conseguido um emprego na Firestone, por indicação de um patrício. Depois vieram a mãe, ele e suas duas irmãs. A família desceu do navio no Rio de Janeiro. Ao perceberem o engano, pediram ao comandante que os deixassem seguir viagem até Santos, onde o patriarca os esperava. Ao, enfim, aportaram na cidade do litoral sul paulista. Reunidos, Jorge e sua família seguiram para Santo André, onde a casa que o pai montara para recebê-los os esperava.

Depois de algum tempo em terras brasileiras, a família cresceu. Jorge ganhou mais duas irmãs e um irmão. "Éramos oito ao todo", relembra.

Nove anos depois, quando ainda era um garoto, Jorge começou a trabalhar como auxiliar de escritório numa empresa em São Paulo. "A vida não estava fácil e, para economizar, eu atravessava a Via Anchieta a pé", conta.

Aos 17 anos, ele caiu de cama sem saber o que era. Sentiu muita dor no abdômen e também muito desânimo. O pai o levou ao hospital, ele foi medicado e tudo passou.
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Jorge conta que com a juventude vieram alguns excessos: bebida, cigarro, noites mal dormidas. "Coisas normais para uma pessoa normal. Mas uma bomba-relógio para que tem pré-disposição para alguma doença", adverte.

Nos bailes, ele bebia pouco, mas demorava muito mais para se recuperar do que os amigos que bebiam bem mais do que ele.

O tempo passou, Jorge se casou e teve dois filhos. Certo dia, já com seus trinta anos, ele tomou duas taças de vinho e ficou péssimo por cerca de três dias. Foi ao médico e aí descobriu que estava diabético. “Vai saber há quanto tempo...”

Segundo ele, o diabetes era silencioso, mas se manifestava todos os dias pela manhã: "Eu costumava tomar um copo de leite com açúcar e, a caminho do trabalho, que ficava em Alphaville, meus olhos começavam a ficar arenosos. Eu tinha que piscar mais forte para lubrificar", relata.

Depois que descobriu o diabetes, Jorge passou a cuidar melhor da alimentação. "Foi muito difícil cortar o açúcar, mas eu tinha que fazer isso."

Há cerca de 10 anos, o filho de Jorge foi estender a mão para entregar um chaveiro ao pai, mas Jorge não conseguiu alcançá-lo, pois não o estava enxergando. "Fui a um oftalmologista, que percebeu que a minha vista esquerda já estava comprometida. Havia um pontinho que ficava passeando na vista, o que, provavelmente, indicava infarto", explica.

Mesmo com o diagnóstico em mãos, Jorge decidiu deixar o problema de lado, pois ainda enxergava muito bem do olho direito. "No fundo, eu tinha medo de descobrir que o outro olho também estava comprometido", confessa. Os infartos, porém, foram ocorrendo sem nenhuma dor, nenhum sintoma. "A única coisa que acontecia de diferente era que, pela manhã, meus olhos às vezes ficavam muito vermelhos”, conta.

Em 2004, Jorge precisou ser submetido a uma cirurgia por causa de uma retinoplastia diabética, consequência do agravamento da doença. No final daquele ano, fez outra cirurgia, desta vez no olho esquerdo. Projetista de estruturas metálicas na área industrial, até então Jorge trabalhava normalmente, apesar de precisar do auxílio de uma lupa. Até que no ano de 2011, ele teve que fazer um transplante de córnea. "Deu muito desanimo, mas já que tinha que fazer, vamos fazer, pensei".

Pouco tempo depois, ele descobriu que estava com catarata e mais uma vez foi operado. "Ao todo, cheguei a fazer 18 cirurgias", diz. "Até então as cirurgias buscavam a recuperação, mas nenhuma delas deu resultado.

Mas a pressão do olho foi aumentando. "Inchava, doía muito, ardia. Daí, tive que fazer mais uma cirurgia para colocar válvulas. Era o glaucoma aparecendo."

Até que, em abril do ano passado, ao andar sozinho pela cidade, Jorge acabou se perdendo. "Nesse dia, na rua, a sensação era que eu ia de encontro ao inesperado", explica. "Perdi o chão. Perdi minha bússola."

Após 45 anos convivendo com o problema, Jorge descobriu que a batalha da visão estava perdida. "Enquanto o médico me pedia exames, eu ainda alimentava a minha esperança. Mas na semana passada, meu médico me comunicou que realmente não há mais nada para se fazer. Estou num caminho sem volta", lamenta.

"Mesmo antes desse diagnóstico final, eu já estava ciente que eu não era mais independente. Eu precisava me reciclar, tinha que buscar essas alternativas dentro de mim. Quando eu já não tinha mais para onde correr, uma amiga da fraternidade que eu frequento me indicou a Fundação Dorina Nowill. Guardei o nome, mas decidi esperar mais um pouco, talvez até mesmo por medo de me aceitar como cego".

Até que no final do ano passado, Jorge viu uma propaganda da Fundação e decidiu ligar para se tornar um doador. "No final, acabei mesmo dizendo que eu precisava de ajuda."

Rapidamente Jorge começou a ser atendido pela Fundação. No mês de maio ele iniciou as aulas de mobilidade e hoje já sabe usar a bengala. Em breve, vai iniciar o braile. "A Dorina me preenche. Desde que comecei a vir aqui, passei a ter um novo pique, a acreditar numa outra etapa. Agora eu sei que eu tenho um lugar que me dá suporte nesta nova fase da minha vida. Aqui eu posso aprender e posso também trocar experiência. Eu sei que a maneira como hoje eu vivo pode ser um exemplo para muitas pessoas e isso alavanca ainda mais a minha vontade de aprender", conta.

"Outro dia eu estava pensando na minha condição. Dizem que eu sou 'Aposentado por invalidez". Mas isso é uma coisa muito forte de se ouvir. Eu sou cego, mas não sou inválido. Eu ainda tenho horizontes e é isso o que me põe pra frente, o que me dá direção. Eu quero fazer, eu vou fazer."

Depois disso, Jorge completa, divertido, porém muito ciente do que quer da vida: "Um dia, quando eu tinha 12 anos, a coisa ficou feia lá em casa e o meu pai me chamou: 'Meu filho, não temos o que comer.' Na mesma hora peguei uma sacola, subi no abacateiro, pelei a árvore e depois saí de porta em porta vendendo a fruta. Ao final do dia, voltei pra casa com a sacola vazia e com o dinheiro na mão para o meu pai colocar comida na mesa. Não me preocupei com o problema, eu fui solucionar. Desde então, tenho isso como uma meta: problema se resolve com solução, não com outro problema. E vai ser assim que eu vou enfrentar a vida daqui pra frente, afinal, o menino que eu fui me ensinou que ninguém fica enroscado em graveto." E em seguida abre aquele sorriso encantador.

"Quero conquistar a minha vida!"

Storytelling

Karina da Silva Souza

Karina nasceu prematura, aos seis meses, pesando 1,75 quilo. A mãe teve problemas na gravidez por conta de uma incompatibilidade sanguínea com o marido. "Fiz o pré-natal, mas ninguém nos informou que poderia haver esse problema", conta Mayre, a mãe de Karina.
Assim que nasceu, Karina precisou ir para a incubadora, pois teve pneumonia e também icterícia. "Para tratar a icterícia, fizeram aplicação de luz sem tampar os olhinhos. Acho que isso comprometeu a vista dela", relata a mãe. Na época, minha sogra chegou a dizer "Essa não vai vingar", lembra.

Mayre e o marido fizeram, então, promessa para Nossa Senhora Aparecida. "Era minha primeira filha, eu não ia aguentar se ela morresse", desabafa.

Aos quatro meses, a mãe percebeu que uma secreção saía constantemente dos dois olhinhos do bebê. "Fomos a um pediatra e ele nos encaminhou para um oftalmologista. E disse que não poderíamos perder tempo; era muito urgente", explica Mayre.

Ao chegar no Hospital das Clínicas, Karina passou por uma série de exames. Com os resultados em mãos, o médico disse: "Mãe, talvez já seja tarde."

"Ficamos desesperados", diz Mayre.

Até que os amigos do marido decidiram fazer uma vaquinha para que Karina pudesse se consultar com um médico famoso de Goiânia. Lá, ele disse que havia um tratamento, chamado vitrectomia, que tinha 5% de chances fazê-la voltar a enxergar. "Mas custava muito caro e a gente não tinha dinheiro."

De volta a São Paulo, Mayre e Karina foram a outra clínica, que decidiu operar duas vezes a córnea da criança. "Mas não adiantou nada. Quando ela fez um ano e meio, o médico deu alta e nós não procuramos mais nada", lamenta a mãe.

"Na época, ficamos muito revoltados. Por que isso estava acontecendo conosco? Nós nunca fizemos mal para ninguém. Tinha muita preocupação, porque eu não conhecia ninguém cego, como eu iria cuidar da minha filha? Sofri muito, mas aí decidi que eu tinha que me preocupar era em encontrar um jeito de ajudar ela a se desenvolver", relata.

Mayre conta que nunca conseguiu uma creche que aceitasse e filha. Apesar de todas as dificuldades que encontrou na escola, desde o primário, Karina conseguiu concluir o Ensino Médio. "Como as escolas não tinham recursos, os professores praticamente ignoravam ela. Ela passou sem aprender matemática, física e química. As escolas nunca ofereceram recursos para que ela pudesse aprender os conteúdos", revolta-se a mãe.

Mas Karina descobriu outros caminhos que conseguiu trilhar com a ajuda das amigas. "Sempre tive poucas amigas, mas todas muito fiéis, e elas sempre me ajudaram", afirma. Aprendeu a usar o computador e estuda inglês desde menina.

A vida no bairro onde mora dificulta muito a autonomia de Karina. Ruas irregulares, sem pavimentação, a inexistência de calçadas e pontos de ônibus que ficam muito distantes de casa deixavam o dia a dia dela ainda mais difícil.

"Por isso, no ano passado eu decidi entrar no site da Fundação Dorina, pois não queria mais que ninguém fosse babá de deficiente. Decidi que eu iria conseguir andar por aí sozinha e fazer tudo o que eu mais gostava".

E assim fez. Aos 22 anos, foi com a mãe até a Fundação e logo começou a ser atendida. Fez o curso de rotinas administrativas, de informática e também a oficina "Desenvolvendo talentos". Agora, Karina está cursando o módulo "Atividades da Vida Diária", onde está aprendendo a cozinhar, e também já está em treinamento para pegar ônibus e metrô sozinha.

"No início, tinha muita vergonha de usar bengala. Ela chama muita atenção e eu sou tímida. Mas pensei: se eu quero ser independente, eu tenho que aprender. Aos poucos, fui descobrindo que tudo é mais fácil do que eu imaginava. Achava que eu iria cair muito, mas isso nunca aconteceu. O mais difícil é lidar com o nervosismo", explica Karina.

Junto dos monitores e colegas da Fundação Dorina, recentemente Karina foi ao teatro e descobriu o universo dos musicais. "Eu gostava muito de cinema, mas depois que conheci os musicais, eu não quis saber de outra coisa! Já assisti ao espetáculo 'Madrinha Embriagada', do Miguel Falabella, umas quatro vezes. Na companhia das amigas ou de algum familiar, eu chego cedo na fila e fico esperando o dia inteiro, se precisar, mas no final eu consigo meu ingresso grátis", diverte-se Karina.

Aos poucos, graças ao seu entusiasmo, a independência de Karina vai se concretizando. Ela está ensaiando uma peça, que deve ser encenada até o final do ano, busca sempre se manter ativa e faz muitos planos para seu futuro. "Gosto de ter o que fazer, de me sentir útil, viva! Quero conseguir fazer uma faculdade. Mas hoje, meu grande sonho eu sei que pode parecer simples para a maioria das pessoas: eu quero conseguir ir sozinha até a Avenida Paulista, passear por lá e ir a todos os teatros que eu puder. Quero conquistar a minha vida!"



segunda-feira, 29 de setembro de 2014

"O que ele tem poderia ter acontecido com qualquer criança"

Storytelling


Bruno

Bruno foi um bebê muito desejado. Por conta disso, Fabiana e Agnello fizeram direitinho todo o pré-natal e, por isso, tudo correu tranquilamente na gravidez.

Mas assim que o filho nasceu, a mãe percebeu que as pupilas do bebê pareciam uma gotinha e os olhinhos tremiam muito.

Rapidamente ela levou o filho ao pediatra, que o encaminhou para um oftalmologista. Foi feito um ultrassom e, então, detectada uma miopia altíssima. "Quando ele nasceu, ele teve icterícia. Quando aplicaram os banhos de luz para o tratamento, eles até taparam os olhinhos dele, mas como ele puxava o tampão, acho que foi por isso que ele ficou com o problema", relata Fabiana.

Já em casa, Bruno quase não mamava. "Achei estranho e voltei com ele para o hospital. Ele ficou mais 10 dias internado. Eu ia e voltava do hospital todos os dias, sacudindo dentro do ônibus, cheia de ponto", conta a mãe. O bebê ainda estava muito amareladinho por causa da icterícia. Aos poucos ele foi se recuperando. "Uma enfermeira disse que eu deveria amamentar de três em três horas, para que ele eliminasse tudo pelo xixi e pelo cocô. E eu fiz tudo direitinho, não perdia a hora, mesmo durante a madrugada", lembra Fabiana. Tanto que, dois meses depois, a icterícia de Bruno estava totalmente curada.

Em seguida, os pais puderam se dedicar a investigar o problema de vista do filho. Após alguns exames, Bruno foi diagnosticado com uma má formação congênita chamada coloboma, estrabismo, miopia, catarata e também nistagmo, que são oscilações repetidas e involuntárias nos olhos. "O que ele tem poderia ter acontecido com qualquer criança", afirmou o doutor.

Com baixa visão e visão subnormal, Bruno começou a usar óculos com sete meses.
Apesar dos problemas de visão, os pais sempre procuraram estimular o desenvolvimento de Bruno. "Mesmo pequenininho, deixávamos ele tatear, procurar, achar sozinho. Ele não engatinhou, mas começou a andar na idade certa, com um aninho", lembra a mãe.

 Aos dois anos de idade, Bruno foi para a creche. Depois, já com quatro anos, ele começou a frequentar o Centro Educacional Unificado (CEU), em São Paulo, mas nunca recebeu muita atenção das professoras. "Como ele consegue fazer tudo sozinho, elas achavam que não tinham que dar mais atenção para ensinar. Mas ele só vê as coisas quando estão muito perto dele. Os coleguinhas já escreviam o nome e nem a-e-i-o-u ele sabia. As professoras não exigiam dele", lamenta Fabiana. "Depois que eu fui até lá reclamar, uma delas chegou a me dizer: 'Mãe, nem eu, nem nenhuma professora vai conseguir ensinar nada para ele em uma turma com 34 alunos."

Depois disso, os pais de Bruno decidiram matriculá-lo em um colégio particular. "Quando ele tinha seis anos, no dia das mães ele chegou com um cartãozinho em casa com o nome dele escrito por ele mesmo. Eu chorei demais", emociona-se Fabiana. "O desempenho dele em seis meses nessa escola particular foi infinitamente superior do que dois anos na outra escola. Faltava empenho para isso", considera Agnello.

Oito anos depois do nascimento de Bruno, Fabiana engravidou novamente. "Eu tinha muito medo de engravidar, mas aí a Helena veio no susto. Hoje sei que ela veio para me ajudar. Ela entende que o Bruno precisa de mais cuidado", diz Fabiana.

Com muito sacrifício, o casal conseguiu incluir Bruno num plano de saúde. "Mesmo no sufoco, sempre tentamos manter o plano para que ele possa continuar com os mesmos médicos", explica Agnello.

E foi uma das médicas com quem Bruno se consulta no convênio que orientou os pais a buscarem apoio para o filho na Fundação Dorina Nowill, onde, já há alguns meses, Bruno vem sendo atendido pela psicopedagoga e pela psicóloga. "Para mim, a Dorina significa uma coisa para o Bruno: desenvolvimento", ressalta o pai. "As pessoas muitas vezes precisam fazer uma curva para chegar no ponto. Na Dorina, a gente vai direto aonde precisamos chegar", expõe Fabiana.

Por orientação da Dorina, os pais não deixam que Bruno use artifícios para enxergar, como a lupa, para que ele não fique preguiçoso e consiga, assim, estimular ao máximo a sua visão. "Além disso, quando as professoras da escola têm alguma dúvida ou encontram alguma dificuldade para ensinar as coisas para o Bruno, elas podem sempre entrar em contato com a Fundação Dorina. Os profissionais de lá passam todas as orientações de como a escola deve proceder. Isso é muito bom, dá muita tranquilidade para a gente", afirma a mãe.

Fabiana e Agnello estão passando por graves problemas financeiros. Há alguns meses, Agnello sofreu um acidente muito sério e precisou passar por três cirurgias. O movimento nos braços ficou comprometido e ele sente constantemente muitas dores, o que impede que ele volte a trabalhar. "Eu, como pai de família, quero cumprir o meu papel. Mas está muito difícil. Não podemos deixar de pagar o plano de saúde das crianças e nem tirar o Bruno da escola particular. Não sei como iremos fazer", desespera-se.

Apesar de todas as dificuldades pelas quais a família passa desde o nascimento de Bruno, problemas esses que pioraram muito desde o acidente de Agnello, Fabiana respira fundo e, com muita força - a força típica das mães que se comprometem a fazer tudo o que podem pelos filhos, enfatiza:  "Se dizem que você não é capaz, é aí que você tem que mostrar que consegue. Nós vamos conseguir e isso é tudo o que eu quero que o Bruno aprenda."

domingo, 28 de setembro de 2014

"Quero voltar a trabalhar. Quero me sentir mais útil, mais alegre, mais ativo"

Storytelling

Pedro Martins Russo 


Pedro tem 47 anos e sempre foi um homem muito religioso. Assiste sempre às missas do Padre Marcelo, se benze em frente à TV, vai à Igreja.

Ele nasceu com catarata cognitiva e com apenas um aninho de vida foi operado. Desde então, passou a enxergar cerca de 9% do olho esquerdo e 1% do direito. Apesar disso, tentava fazer tudo o que uma criança fazia na sua época: andava a cavalo, pescava tilápia, jogava bola e até andava de bicicleta. Assim como qualquer criança, sofria pequenos acidentes porque era muito arteiro.

Se fora da escola a vida seguia normalmente, dentro das salas de aula as coisas nunca correram muito bem para ele. "Os moleques riam de mim, ficavam tirando sarro das minhas dificuldades", conta. Como Pedro praticamente enxergava só do olho esquerdo,
ele tinha que ficar mudando de carteira para enxergar a lousa inteira e copiar as matérias. "Eu ficava muito triste mesmo. Apesar de conseguir tirar boas notas, eu voltava da escola chorando por causa das gozações", relembra. No ginásio, as professoras não ajudavam muito. "Como eu ainda enxergava um pouco, eles não se preocupavam. Não existia nada com letras ampliadas e isso dificultava muito as coisas", diz. Até que um dia, cansado de tanta humilhação e discriminação, Pedro desistiu de estudar. Largou a escola na 5a série.

Anos depois, já no início da vida adulta, Pedro havia decidido voltar para a escola e concluir o Ensino Médio. "Quando cheguei lá, no meu primeiro dia de aula, entrei todo animado na classe que eles havia separado para mim. Quando me dei conta, descobri que eles tinham me colocado numa turma de doentes mentais", lembra entristecido.

Mais uma vez largou os estudos e se dedicou apenas a trabalhar. Foi office-boy dos 14 aos 19 anos. Depois, junto do pai, foi trabalhar como servente de pedreiro e também como jardineiro. "Cheguei a fazer um jardim na casa da Elba Ramalho", orgulha-se. Ele achava muito difícil conseguir um emprego, pois acreditava que ninguém queria empregá-lo por causa do aspecto dos olhos, que ficavam sempre 'pulando', em movimentos ininterruptos.

Até que, em 2001, aos 34 anos, Pedro foi atropelado por um carro, enquanto esperava um ônibus perto de sua casa, na Estrada de Itapecerica. Ele bateu violentamente a cabeça no chão e ficou 17 dias internado. Ele teve um trauma muito grande na perna, que quase foi amputada. Ao voltar para casa, Pedro ficou um ano e dois meses de cama.

Tanto tempo depois, aos poucos ele voltou a andar. Numa dessas tentativas, Pedro sofreu uma hemorragia que provocou deslocamento em sua na retina. "Via só um risquinho preto no canto do olho e fiquei completamente cego durante um mês", narra.

Mais uma vez ele ficou internado. Não conseguiu ser operado e voltou para casa. Algum tempo depois, com a ajuda de um pároco amigo da família, Pedro finalmente foi operado e voltou a enxergar vultos. "Não via de perto e nem muito abaixo da linha dos ohos, mas enxergava alguma coisa", relata. E assim viveu até 2012.

Mas a pressão dos olhos foi subindo. Após o acidente, Pedro passou a ter Glaucoma e, por causa disso, precisou fazer mais três cirurgias no olho esquerdo. "Sem me dar conta, descobri que eu já havia ficado cego do olho direito", afirma.

As duas primeiras cirurgias não foram eficazes, mas ele ainda tinha um mínimo de visão. Mas durante a terceira cirurgia, Pedro sentiu uma dor lancinante que o deixou até sem voz. "Foi aí que eu fiquei cego", lembra. "Depois de eu me recuperar, a doutora veio conversar comigo numa linguagem tão complicada que eu não consegui entender nada. E assim fiquei: nunca soube o que aconteceu comigo", lamenta.

"Depois, perguntei ao outro médico se eu iria fazer a quarta cirurgia que estava planejada, e ele simplesmente respondeu: 'Não vamos mais gastar com isso, não. Não vai resolver nada. Não vale a pena.”

Depois disso Pedro entrou em depressão e ficou mais de um ano sem sequer sair da cama. "Eu sentia uma tristeza tão profunda que parecia que eu ia morrer. Achava que eu estava num buraco muito escuro. Eu acordava dentro do nada, vivia dentro do nada, dormia dentro do nada", descreve.

Pedro já conhecia a Fundação Dorina Nowill, mas naquele momento decidiu que não iria procurar ajuda. “De cego todo mundo desfaz. Não vou lá, não.”

Até que um dia, as doutoras Roberta e Luciana, do posto de saúde da Vila das Belezas, zona sul de São Paulo, foram até a casa de Pedro decididas a tirá-lo daquela reclusão auto imposta. "Elas vieram aqui, me tiraram de casa e me levaram para a Dorina", explica.

Pouco tempo depois, Pedro deu início às atividades na Fundação. "Fiz computação e até aprendi a usar o Facebook, que é por onde eu me comunico com a minha afilhada, que mora no Japão", relata. Ele assou também pela fisioterapia e pelas aulas de mobilidade, onde aprendeu a usar a bengala.

"No início eu tinha muito medo. Achava que nunca iria conseguir andar sozinho. Aí, na Dorina me aconselharam: 'Você tem que enxergar pelos sons'. Com a ajuda das monitoras fui praticando, aprendendo, mas ainda sentia muito medo. As ruas não têm identificação para cegos e quando os carros passavam meu coração quase parava! Mas mesmo assim decidi que iria tentar fazer meu primeiro passeio sozinho. Nesse dia, acordei bem cedo para que a minha mãe não me visse saindo. Meu primeiro passeio seria até a igreja, para que eu pudesse pedir Nossa Senhora para me ajudar. Mas o medo foi tão grande que alterei o percurso e fui parar na casa do meu irmão", diverte-se.

Até que Pedro decidiu que iria sozinho para as suas atividades na Fundação Dorina. "Toda semana as pessoas tinham que me levar na Dorina e eu sentia que eu era um peso na vida delas. Saí de casa, cheguei na calçada e uma pessoa se ofereceu para me ajudar a atravessar a avenida e me colocou dentro do ônibus. O motorista foi tão bom que parou para eu descer bem em frente ao piso tátil que tem ali na rua Botucatu. Antes de descer, agradeci: 'Obrigado por seu amor incondicional”.

Em breve, Pedro vai começar na Dorina as "Atividades da Vida Diária (AVD). "Quero aprender muito. Quero ver se eu consigo me especializar em alguma coisa, pois eu quero voltar a trabalhar. Quero me sentir mais útil, mais alegre, mais ativo.

"Dia após dia, a Fundação Dorina foi me mostrando que há outras formas de viver a vida. Aos poucos fui aprendendo também a confiar nas pessoas, pois maioria se dispõe a ajudar", comenta.

Neste momento, dona Cidinha, a mãe de Pedro, que ouvia atentamente os relatos do filho, interrompe a entrevista para dizer: "Depois que o Pedro foi para a Dorina ele virou outra pessoa.”

Pedro, então, emendou no comentário da mãe: "Tem um versículo de João* que diz assim: 'Disse-lhe Nicodemos: Como pode um homem nascer, sendo velho? Pode, porventura, tornar a entrar no ventre de sua mãe, e nascer?' Pois é assim que eu me sinto depois que entrei para a Dorina. A Dorina foi o ventre que me deu a chance de renascer."

* (João 3:4)

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Storytelling


Gustavo Henrique de Aquino Gomes

Oinc, oinc é o que provavelmente qualquer pessoa que se aproximar de Gustavo vai ouvir, assim que conquistar a sua simpatia. Entre uma frase e outra, o divertido menino contrai o nariz, levanta a boca e solta o ronquinho do mesmo jeito engraçado que a sua querida Peppa Pig faz no desenho animado da televisão.
Irrequieto, Gustavo abraça sua Peppa de pelúcia, ao mesmo tempo em que dá um abraço na mãe e corre para a TV, onde assiste aos desenhos da família de porquinhos, que são os que ele mais ama.

Apesar de tanta vivacidade, Gustavo não vê as coisas como a maioria das pessoas. Para enxergar a TV, ele precisa ficar bem de perto para perceber as nuances de sombras, cores e movimento. A Peppa ele assiste com o nariz quase coladinho na tela da TV.

É feliz assim e desse mesmo jeitinho enche a casa de alegria.

A gravidez de Izabel, mãe de Gustavo, foi absolutamente normal. Ela fez todo o pré-natal, seguiu todas as recomendações do médico e teve um parto muito tranquilo.

Pouco tempo depois de dar à luz, Izabel começou a perceber que os olhinhos do seu bebê eram muito irrequietos e quase não paravam de se mexer. Preocupada, ela procurou um médico que disse de supetão: "Mãe, seu filho é cego."

Inconformada, Izabel foi a outro médico, dessa vez um retinólogo. Ele pediu diversos exames e Gustavo foi encaminhado para o Hospital das Clínicas, em São Paulo. Lá, o bebê foi diagnosticado com "hipoplasia do nervo óptico", uma alteração que provoca uma atrofia que diminui sensivelmente a acuidade visual. No HC, o médico que atendeu Gustavo confirmou a cegueira e, em seguida, deu alta para o menino. Disse apenas “Não há o que fazer”.

“O diagnóstico me assustou, claro, e me deixou muito apreensiva. Não tinha a menor ideia de como iria criar o meu filho. Mas, mesmo assim, decidi que iria estimulá-lo ao máximo. Tudo o que eu poderia fazer para que ele se desenvolvesse eu iria fazer e seria a partir daquele exato momento, sem perder nem um dia, mesmo ele sendo ainda um bebezinho”, conta Izabel.

Ela e os irmãos passaram a comprar brinquedinhos que pudessem estimular Gustavo com luzinhas piscantes e sons. “E ele gostava demais. Sorria muito e batia os pezinhos de alegria”, relembra a mãe.

Aos poucos, Izabel começou a notar que o filho conseguia perceber a diferença entre as cores, mas, segundo ela, os médicos não acreditavam. "Achavam que eu estava sugestionada. Fui a dois especialistas depois disso e apesar de tudo o que eu relatava, nenhum deles pediu novos exames e ambos insistiram que meu filho era cego."

Isso fez com que ela jamais deixasse de acreditar que iria descobrir exercícios e atividades que pudessem estimular Gustavo. Tanto quanto buscar o desenvolvimento, ela também sempre teve como regra jamais superproteger o filho para não impedir o desenvolvimento dele. "Sabia que se eu fizesse coisas demais por ele, eu acabaria por retardar a evolução do Gustavo. Tanto que um tempo depois comecei a procurar uma creche, pois queria que ele começasse a se relacionar com outras crianças o quanto antes. Sabia que isso seria bom para ele", relata.

Mas nenhuma creche se dispunha a aceitá-lo. A diretora de uma das escolinhas afirmou que não poderia aceitar o menino pois nenhuma de suas professoras tinha conhecimento suficiente para educá-lo. A experiência vivida por Izabel mostrou a ela que, no geral, as professoras da rede pública de ensino não são preparadas para lidar com alunos deficientes e muitas vezes nem sabem que terão alunos especiais em suas classes. "No primeiro dia de aula de Gustavo, a professora descobriu que teria na classe um aluno cego e outro com paralisia cerebral. Ela se assustou e disse: ‘como é que eu vou ficar com duas crianças assim?' Não é má vontade das professoras, é susto!", argumenta Izabel.

"Até que quando ele fez dois anos encontrei uma creche que aceitou recebê-lo. Quando ele chegou lá ele amou! O Gustavo começou a descobrir o espaço, a andar segurando nas coisas e rapidinho todos pegaram amor por ele. Com a estimulação das tias ele conseguiu deixar as fraldinhas, começou a jogar bola, a brincar no escorregador. Foi incrível", recorda.

Com o apoio das professoras da creche, Izabel arregaçou as mangas e começou a procurar na internet orientações para a educação do filho. "Quando uma achava alguma coisa, propunha: 'Vamos fazer assim?' E fazíamos. Algumas coisas davam certo, outras nem tanto, mas a gente tentava. As tias da creche queriam achar um caminho para ajudá-lo tanto quanto eu. Tudo o que elas descobriram foi mérito delas mesmo, foi tudo resultado do interesse delas em ajudar o Gustavo", diz emocionada.

Aos poucos, as professores decidiram ensinar a ele as primeiras letrinhas. Mesmo sem prática, com a ajuda da mãe todas foram tentando achar o melhor jeito de ensinar. "Ninguém sabia muito bem como fazer, mas mesmo sem orientação, a gente tentava se virar. Tive a ideia de fazer as letras em relevo, com a ajuda daquelas tintas plásticas, e aí ele foi aprendendo. Ele começou a conhecer as letrinhas e a falar o nome de cada uma. Ele tem uma memória incrível!"

Embora todos os médicos que examinaram Gustavo tenham dito à Izabel que o filho era cego, ela jamais teve nas mãos um papel que atestasse essa deficiência. Até que no final de 2013, o sogro a ajudou a pagar a consulta de um oftalmologista muito recomendado que, finalmente, atestou que Gustavo tinha 10% de visão.

Foi esse médico que encaminhou Izabel e Gustavo à Fundação Dorina. No início de 2014, ela ligou para a Fundação e, pouco tempo depois, mãe e filho foram chamados para darem início ao acompanhamento pedagógico.
"Finalmente, meu filho iria receber acompanhamento especializado e eu e as professoras teríamos as orientações profissionais que tanto buscávamos e precisávamos".

Para chegarem até à Fundação, Izabel e Gustavo percorrem um longo caminho de mais de três horas: eles pegam um trem em Mogi das Cruzes, onde moram, param em Guaianases, depois vão até à Estação da Luz e aí pegam o metrô até a Vila Mariana. Andam alguns quarteirões até que, finalmente, chegam para o atendimento semanal.

"Tanto esforço vale a pena. O Gustavo adora ir para a Dorina. Esse é meu maior termômetro. Apesar do pouco tempo, ele já se desenvolveu bastante e de forma correta, sem invenções, sem tentativas, sem erros, como sem querer fazíamos antes. O mais bonito é que todas as professoras da creche querem estar a par do que ele faz na Fundação para conseguirem acompanhar de forma correta o desenvolvimento dele e também para poder utilizar esse conhecimento com outras crianças cegas que podem chegar um dia até a creche. O conhecimento que elas não têm em sua formação ou nas creches onde trabalham, elas acabam adquirindo por meio da Fundação Dorina", analisa Izabel. "Isso é importante demais, porque essas professoras conseguem multiplicar para outras crianças o que aprendem através do Gustavo", reforça.

Desde que começou a ser atendido pela Fundação, Izabel conta que Gustavo ficou mais "soltinho" e muito mais independente. Ele já toma banho sozinho, ajuda em casa e, em breve, vai começar a aprender o braile.

"Tudo o que eu mais sonho é que ele seja um adulto independente. E tudo o que eu puder fazer para ajudá-lo nisso eu vou fazer. Nunca vou tratá-lo como um coitadinho. Ele não é coitadinho. Ele é saudável, é inteligente e vai ser tratado como qualquer criança tem que ser tratada", expõe Izabel. "E agora que encontramos a Fundação Dorina eu sei que nós não estamos mais sozinhos nessa busca", comemora a mãe.