terça-feira, 30 de setembro de 2014

"Eu sou cego, mas não sou inválido. Eu quero fazer, eu vou fazer"

Storytelling


Jorge Manuel Fortes Pires

O vozeirão aveludado e o sorriso fascinante vieram lá de Cabo Verde, uma pequena ilha localizada no Oceano Atlântico, a pouco mais de 500 quilômetros da costa da África Ocidental.

Na ilha, Jorge morava com a avó paterna, para lhe fazer companhia, e durante o dia ficava com a avó materna. Em 1960, o menino cabo-verdiano chegou ao Brasil quando tinha seis anos de idade. Daqui nunca mais sairia, para a terra natal nunca mais voltou. "Meus pais decidiram ir embora, pois lá não chovia. Não havia vida”.

Primeiro veio o pai, que havia conseguido um emprego na Firestone, por indicação de um patrício. Depois vieram a mãe, ele e suas duas irmãs. A família desceu do navio no Rio de Janeiro. Ao perceberem o engano, pediram ao comandante que os deixassem seguir viagem até Santos, onde o patriarca os esperava. Ao, enfim, aportaram na cidade do litoral sul paulista. Reunidos, Jorge e sua família seguiram para Santo André, onde a casa que o pai montara para recebê-los os esperava.

Depois de algum tempo em terras brasileiras, a família cresceu. Jorge ganhou mais duas irmãs e um irmão. "Éramos oito ao todo", relembra.

Nove anos depois, quando ainda era um garoto, Jorge começou a trabalhar como auxiliar de escritório numa empresa em São Paulo. "A vida não estava fácil e, para economizar, eu atravessava a Via Anchieta a pé", conta.

Aos 17 anos, ele caiu de cama sem saber o que era. Sentiu muita dor no abdômen e também muito desânimo. O pai o levou ao hospital, ele foi medicado e tudo passou.
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Jorge conta que com a juventude vieram alguns excessos: bebida, cigarro, noites mal dormidas. "Coisas normais para uma pessoa normal. Mas uma bomba-relógio para que tem pré-disposição para alguma doença", adverte.

Nos bailes, ele bebia pouco, mas demorava muito mais para se recuperar do que os amigos que bebiam bem mais do que ele.

O tempo passou, Jorge se casou e teve dois filhos. Certo dia, já com seus trinta anos, ele tomou duas taças de vinho e ficou péssimo por cerca de três dias. Foi ao médico e aí descobriu que estava diabético. “Vai saber há quanto tempo...”

Segundo ele, o diabetes era silencioso, mas se manifestava todos os dias pela manhã: "Eu costumava tomar um copo de leite com açúcar e, a caminho do trabalho, que ficava em Alphaville, meus olhos começavam a ficar arenosos. Eu tinha que piscar mais forte para lubrificar", relata.

Depois que descobriu o diabetes, Jorge passou a cuidar melhor da alimentação. "Foi muito difícil cortar o açúcar, mas eu tinha que fazer isso."

Há cerca de 10 anos, o filho de Jorge foi estender a mão para entregar um chaveiro ao pai, mas Jorge não conseguiu alcançá-lo, pois não o estava enxergando. "Fui a um oftalmologista, que percebeu que a minha vista esquerda já estava comprometida. Havia um pontinho que ficava passeando na vista, o que, provavelmente, indicava infarto", explica.

Mesmo com o diagnóstico em mãos, Jorge decidiu deixar o problema de lado, pois ainda enxergava muito bem do olho direito. "No fundo, eu tinha medo de descobrir que o outro olho também estava comprometido", confessa. Os infartos, porém, foram ocorrendo sem nenhuma dor, nenhum sintoma. "A única coisa que acontecia de diferente era que, pela manhã, meus olhos às vezes ficavam muito vermelhos”, conta.

Em 2004, Jorge precisou ser submetido a uma cirurgia por causa de uma retinoplastia diabética, consequência do agravamento da doença. No final daquele ano, fez outra cirurgia, desta vez no olho esquerdo. Projetista de estruturas metálicas na área industrial, até então Jorge trabalhava normalmente, apesar de precisar do auxílio de uma lupa. Até que no ano de 2011, ele teve que fazer um transplante de córnea. "Deu muito desanimo, mas já que tinha que fazer, vamos fazer, pensei".

Pouco tempo depois, ele descobriu que estava com catarata e mais uma vez foi operado. "Ao todo, cheguei a fazer 18 cirurgias", diz. "Até então as cirurgias buscavam a recuperação, mas nenhuma delas deu resultado.

Mas a pressão do olho foi aumentando. "Inchava, doía muito, ardia. Daí, tive que fazer mais uma cirurgia para colocar válvulas. Era o glaucoma aparecendo."

Até que, em abril do ano passado, ao andar sozinho pela cidade, Jorge acabou se perdendo. "Nesse dia, na rua, a sensação era que eu ia de encontro ao inesperado", explica. "Perdi o chão. Perdi minha bússola."

Após 45 anos convivendo com o problema, Jorge descobriu que a batalha da visão estava perdida. "Enquanto o médico me pedia exames, eu ainda alimentava a minha esperança. Mas na semana passada, meu médico me comunicou que realmente não há mais nada para se fazer. Estou num caminho sem volta", lamenta.

"Mesmo antes desse diagnóstico final, eu já estava ciente que eu não era mais independente. Eu precisava me reciclar, tinha que buscar essas alternativas dentro de mim. Quando eu já não tinha mais para onde correr, uma amiga da fraternidade que eu frequento me indicou a Fundação Dorina Nowill. Guardei o nome, mas decidi esperar mais um pouco, talvez até mesmo por medo de me aceitar como cego".

Até que no final do ano passado, Jorge viu uma propaganda da Fundação e decidiu ligar para se tornar um doador. "No final, acabei mesmo dizendo que eu precisava de ajuda."

Rapidamente Jorge começou a ser atendido pela Fundação. No mês de maio ele iniciou as aulas de mobilidade e hoje já sabe usar a bengala. Em breve, vai iniciar o braile. "A Dorina me preenche. Desde que comecei a vir aqui, passei a ter um novo pique, a acreditar numa outra etapa. Agora eu sei que eu tenho um lugar que me dá suporte nesta nova fase da minha vida. Aqui eu posso aprender e posso também trocar experiência. Eu sei que a maneira como hoje eu vivo pode ser um exemplo para muitas pessoas e isso alavanca ainda mais a minha vontade de aprender", conta.

"Outro dia eu estava pensando na minha condição. Dizem que eu sou 'Aposentado por invalidez". Mas isso é uma coisa muito forte de se ouvir. Eu sou cego, mas não sou inválido. Eu ainda tenho horizontes e é isso o que me põe pra frente, o que me dá direção. Eu quero fazer, eu vou fazer."

Depois disso, Jorge completa, divertido, porém muito ciente do que quer da vida: "Um dia, quando eu tinha 12 anos, a coisa ficou feia lá em casa e o meu pai me chamou: 'Meu filho, não temos o que comer.' Na mesma hora peguei uma sacola, subi no abacateiro, pelei a árvore e depois saí de porta em porta vendendo a fruta. Ao final do dia, voltei pra casa com a sacola vazia e com o dinheiro na mão para o meu pai colocar comida na mesa. Não me preocupei com o problema, eu fui solucionar. Desde então, tenho isso como uma meta: problema se resolve com solução, não com outro problema. E vai ser assim que eu vou enfrentar a vida daqui pra frente, afinal, o menino que eu fui me ensinou que ninguém fica enroscado em graveto." E em seguida abre aquele sorriso encantador.

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